Páginas

12 de novembro de 2009

Lamentações de todos os dias para sempre

De louco todo mundo tem um pouco e se não tem agora com certeza, no decorrer da idade ela chega. Costuma chegar sem pedir licença, não lhe deixa margem para escapatória, mas lhe dá a opção de ser cômico ou o famoso “chato de galocha”.

O nosso personagem Eulálio Montenegro d'Assumpção escolheu ser cômico, mesmo sendo um centenário doente em uma cama de hospital. A sua maior intenção é contar uma história, para as enfermeiras, para a filha ou para quem quiser ouvir.


Uma história sobre a sua árvore genealógica que tem como plano de fundo a história do Brasil, começando com o seu tataravô que era um barão do Império, passando pela república e indo até o seu tataraneto, um garotão do Rio de Janeiro atual.

Uma linhagem que pode ser comparada aos nossos queridos ‘José Acardio Buendia’ (100 anos de solidão – Gabriel Garcia Marques), onde os nomes além de serem passados para as gerações me parece que eles também carregam uma característica.

Impulsivos, machões, oportunistas e egocêntricos. Mas a vida de Eulálio foi, aparentemente, mais decadente. De uma família de classe alta, super importante e moradora de um chalé em Copacabana para uma família sem valores e que passa a morar no fundo de uma igreja evangélica, onde outrora foi um cemitério que está enterrado o seu avô.

“Pai rico, filho nobre, neto pobre.” (BUARQUE, 2009, p.18).

Toda essa narrativa vem de uma memória desfalecente que mesmo sendo repetitivo, confuso, embaralhado e cheio de ironias prende o leitor, cria dívidas e suspenses.

Paralelamente entramos nas memórias intimas do personagem. Que são apresentadas pelo autor através de temas relevantes ao comportamento humano: egoísmo, paixão, desejo, velhice, traição, rejeição, abandono, depressão, solidão, dentre outros.

Ele nos conta da vergonha que sentiu sobre a sua primeira ereção, sobre o pai corrupto e mulherengo, a mãe reservada e preconceituosa, a filha totalmente influenciável e também sobre a pessoa que ele mais amou na vida: Matilde.

“Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe-se a culpa na feiúra.” (BUARQUE, 2009, p. 62).

Um amor louco, possessivo, uma paixão avassaladora que transformou seu amor em dúvida, ciúme e egoísmo. Nisso encontramos outro personagem notável, Bento Santiago mais conhecido como Bentinho (Dom Casmurro – Machado de Assis).

Em “Dom Casmurro”, há a eterna dúvida sobre a fidelidade de Capitu, enquanto no livro de Chico Buarque a dúvida é o verdadeiro paradeiro de Matilde. Confesso que ainda estou com outras dúvidas sobre a Matilde, mas é ai que se constrói uma bela história.


“Mas se com a idade a gente dá para repetir certas histórias , não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida” (BUARQUE, 2009, p.184)





Resenha de "O leite derramado" do Chico Buarque

Nenhum comentário: